O meu prato tem pesticidas? - série "Acordai!" (parte 1) – BIO da Caria

O meu prato tem pesticidas? - série "Acordai!" (parte 1)

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Foto por Matt McKenna 

 

Desde que começámos a produzir alimentos na Caria, há mais de 7 anos, que a prioridade foi produzir alimentos sãos, biológicos e livres de resíduos.
Desde então fomos aprendendo cada vez mais sobre como produzir de modo mais sustentável e também aprofundando conhecimentos sobre os perigos e problemas que resultam da aplicação de pesticidas.
 
Não é que o nosso objectivo seja criticar o produtor convencional, porque não temos vontade de dizer mal de alguém só para passar o tempo, nem queremos argumentar que só por sermos produtores bio somos melhores. Não. Na verdade, jogamos na mesma equipa: alimentamos pessoas com os frutos do nosso trabalho. Sonhamos é que um dia mais produtores convencionais venham a jogar com a táctica e a filosofia do modo de produção biológico, ou, melhor ainda, com outros modos de produção ainda mais sustentáveis.

Já parou para pensar se o seu prato tem pesticidas?

  
Felizmente, temos tido publicações regulares sobre as estatísticas dos pesticidas na Europa e o último relatório, The 2020 European Union report on pesticide residues in food, saiu há poucas semanas!
Revirámos centenas de páginas para percebermos as tendências e para que fique também mais informado.


A resposta politicamente correcta é de que 94.9% das 88 141 amostras analisadas em 2020 para resíduos de pesticidas se encontram com níveis abaixo do limite de resíduos máximo legal.

Mas uma resposta mais honesta requer alguma investigação e sobretudo algum pensamento crítico. Esta primeira estatística sumária começa logo por ser uma má notícia, tendo em conta que estamos pior do que em 2019, onde o valor de amostras dentro da lei era de 96.1%, e portanto um decréscimo de amostras legais de 1.2 pontos percentuais.


Avisamos já que a fotografia da agricultura convencional não ficou bonita...
E o horror silencioso dos pesticidas ameaça também a agricultura biológica (mas falaremos mais sobre isto numa futura oportunidade).

 

Índice
Numa década mais de 3.5 milhões de toneladas de pesticidas vendidos na Europa
A resposta mais honesta (e menos politicamente correcta)
Pesticidas múltiplos
O famoso glifosato
Um indicador da perigosa viticultura europeia?
Produtos de origem animal
Os pesticidas ilegais (não aprovados) detectados
Acordai! 

 

Numa década mais de 3.5 milhões de toneladas de pesticidas vendidos na Europa

Figura 1: Vendas de pesticidas, EU, 2011-2020 (toneladas). Fonte: Eurostat

 

O gráfico acima mostra, numa linha quase recta, um valor muito estável de cerca de 350 000 toneladas de pesticidas vendidos por ano na Europa nos últimos 10 anos (2011-2020). Isto significa um valor acumulado de 3.5 milhões de toneladas de pesticidas numa década...

É caso para questionar como é que a União Europeia, que definiu o objectivo de 25% de área agrícola em modo biológico para 2030 (actualmente em 9.1%, dados de 2020), pretende atingir este objectivo se não conseguiu promover uma redução significativa da venda de pesticidas nos últimos anos?

 

Figura 2: Área em Modo de Produção Biológico, EU, 2020 (percentagem da superfície agrícola útil total). Fonte: Eurostat

 

Uma nota positiva é o aumento da área agrícola em modo biológico de 9.5 milhões de hectares em 2012 para 14.7 milhões de hectares em 2020 (+56%), onde nos orgulhamos de contribuir com a nossa pequena gota no oceano.

Em termos absolutos, quanto à percentagem de área agrícola em modo bio ou em conversão na União Europeia, França (17.1%), Espanha (16.6%) e Itália (14.2%) lideram a corrida europeia. Já em termos relativos, o que talvez seja uma comparação mais justa, a percentagem da superfície agrícola útil em modo bio foi mais elevada na Áustria (25%), Estónia (22%) e Suécia (20%). 

A resposta mais honesta (e menos politicamente correcta)

Apesar de 94.9% das amostras se encontrar dentro da lei, o relatório de controlo de resíduos europeu reconhece que apenas 54.6% (48 181 amostras) estavam livres de resíduos quantificáveis para cada um dos pesticidas analisados. O mesmo é dizer que (100-54=45) 45% das amostras analisadas têm resíduos de pesticidas. Por exclusão de partes, 5.1% das amostras estavam fora da lei, com resíduos de pesticidas acima do valor máximo legalmente permitido, outro indicador que também está pior do que em 2019, onde era 3.9%.

 

A tendência dos resíduos de pesticidas nos alimentos europeus

 

Gráfico com a classificação da percentagem de amostras livre e contaminada com pesticidas (45% de amostras contaminadas com pesticidas em 2020 na União Europeia)

Figura 3: Classificação da percentagem de amostras em livre de pesticidas ou contaminada com pesticidas na União Europeia entre 2011 e 2020 (com dados publicados em 2022). Fonte: Eurostat. Autoria: Quinta Pedagógica da Caria

Se virmos nos relatórios europeus dos últimos anos, a percentagem de amostras com e sem resíduos de pesticidas, verificamos que a taxa de contaminação das amostras se mantém entre 43 e 49% nos últimos 10 anos com flutuações muito ligeiras. Não será que devemos exigir melhores resultados de uma União Europeia que tanto promove a segurança alimentar, a agricultura biológica e a estratégia "da quinta ao garfo", que pretende fazer os sistemas de produção de alimentos mais justos, saudáveis e amigos do ambiente?

 


Países mais verdes - local de consumo
Os países onde se encontram disponíveis produtos com a menor taxa de detecção de resíduos são: a Eslovénia (16%), a Letónia (16%), a Holanda (28%), a França (32%), a Roménia (32%) e a Itália (32%).
 
Países mais intoxicados - local de consumo
Os países onde se encontram disponíveis produtos com a maior taxa de detecção de resíduos são: a Bulgária (68%), a República Checa (68%), a Alemanha (61%), a Eslováquia (56%), e a Estónia (55%).
 
Portugal (local de consumo)
Em Portugal, foram detectados resíduos de pesticidas em 54% das amostras, ou seja, pior do que a média europeia de 45%. E em 5.9% das amostras foram quantificados resíduos de pesticidas acima do máximo legal, novamente pior do que a média europeia de 5.1%.
 
Países mais verdes - país de origem do produto
Os países onde são produzidos produtos com a menor taxa de detecção de resíduos são: Eslovénia (9.5%), Ucrânia (10.5%), Islândia (11.1%), Irlanda (11.3%), Letónia (11.6%) e Lituânia (12%).
 
Países mais intoxicados - país de origem do produto
Os países da Europa onde são produzidos produtos com a maior taxa de detecção de resíduos são: Turquia (68%), Espanha (59%), Alemanha (55%), Albânia (53%), Bélgica (53%), Portugal (52%), Chipre (51%) e Grécia (50%). Já se olharmos para fora da Europa, encontramos valores de detecção ainda mais assustadores, como por exemplo: 100% em Serra Leoa, Haiti, Porto Rico, Coreia do Norte, Oman, Arménia e República Central Africana, 86% na África do Sul e Namíbia, 83% em Laos e Benim, 75% em Costa Rica, 73% em Bangladesh e Colômbia, quase 70% em Marrocos e Brasil.

 

Pesticidas múltiplos

Das 88 141 amostras analisadas no programa de controlo da União Europeia em 2020, 45.3% (ou 39 960 amostras) continham um ou mais pesticidas quantificáveis, um aumento visível se comparado com 43.4% em 2019. Foram detectados múltiplos resíduos em 27% (24 057 amostras), uma percentagem igual a 2019. Nota o relatório que numa amostra de um único morango foram detectados até 35 pesticidas diferentes, sendo esta amostra de origem desconhecida. Além das laranjas e pêras que apresentaram amostras com até 13 e 14 pesticidas diferentes, respectivamente, os pimentos e o vinho foram as outras duas categorias com uma taxa mais elevada de resíduos múltiplos quantificáveis.

 

O famoso glifosato

Da pesquisa dedicada aos resíduos de glifosato, o relatório reporta que 97.4% das amostras não continham resíduos quantificáveis. No entanto, ainda assim foram detectados resíduos de glifosato em 487 amostras de alimentos para alimentação humana, incluindo em comida para bebés, e em 210 amostras de alimentação animal.

Um indicador da perigosa viticultura europeia?

No que respeita à categoria de produtos processados, há um deles que salta à vista pelos piores motivos. É o caso das folhas de videira e similares, onde 73.5% de todas as amostras estavam com resíduos de pesticidas quantificáveis acima do limite máximo legal.

Se as folhas de videira estão neste estado, dará para imaginar que tipo de uvas e de vinhos europeus estamos a ingerir?

 

Produtos de origem animal

Das 12 142 amostras de origem animal, 92% estavam livres de resíduos quantificáveis. Apesar disto, a categoria de amostras de mel e produtos apícolas foi a que evidenciou um maior número de pesticidas diferentes (30), seguido por fígado (24), gordura (18) e carne (15), enquanto as outras categorias tiveram um número de pesticidas diferentes quantificáveis inferior a 10 (rim, leite, ovos, e outros produtos animais não especificados).

 

Exposição dietética e análise de risco de saúde

No geral, a Agência Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA) refere que a exposição pela dieta a resíduos de pesticidas é uma causa improvável de risco para a saúde do consumidor europeu. Mais uma vez, se procurarmos um pouco mais a fundo, vemos que o relatório identifica como produtos mais perigosos em termos de exposição aguda a pesticidas: pêras, laranjas, arroz, batatas, cenouras, couve-flor, feijão seco e kiwis. 

 

Os pesticidas ilegais (não aprovados) detectados

Nos controlos aleatórios de alimento produzidos na UE foram encontrados repetidamente vários pesticidas que não estão aprovados para utilização na União Europeia, excedendo os limites legais definidos, nomeadamente em:

  • laranjas (dimethoate, linuron)
  • feijão seco (triadimenol)
  • cenouras (iprodione, linuron, dieldrin, chlorpyrifos-methyl)
  • pêras (chlorpyrifos, iprodione, diphenylamine)
  • batatas (chlorpyrifos, fipronil)
  • kiwis (dimethoate)
  • centeio (chlorpyrifos, thiacloprid)
  • arroz (thiamethoxam)
  • gordura de aves (hexachlorobenzene).

O mesmo aconteceu em amostras de alimentos produzidos em países terceiros:

  • feijão seco (carbaryl, chlorpyrifos, fenitrothion, hexaconazole)
  • cenouras (iprodione)
  • kiwis (spirodiclofen)
  • laranjas (bromopropylate, carbendazim, fenbutatin oxide, profenofos)
  • pêras (chlorpyrifos)
  • arroz (carbendazim, chlorpyrifos, hexaconazole, profenofos, thiamethoxam, triazophos, tricyclazole).

 

O próximo artigo desta série "Acordai!", aborda outro aspecto invisível dos pesticidas que andam por aí. Para conhecer o estudo inédito sobre poluição do ar por pesticidas, saiba mais aqui.

Saudações bio,

Quinta Pedagógica da Caria

 

Se gostou deste artigo, talvez lhe interesse o artigo sobre Pesticidas em Vinhos Não Biológicos na União Europeia: Uma Análise dos Resíduos e Preocupações.

 

Referências
The 2020 European Union report on pesticide residues in food. European Food Safety Authority (EFSA), Luis Carrasco Cabrera and Paula Medina Pastor (2022).
The 2020 European Union report on pesticide residues in food (infographs). European Food Safety Authority (EFSA), Luis Carrasco Cabrera and Paula Medina Pastor (2022).
Agri-environmental indicator - consumption of pesticides. Eurostat. (2022).
Organic farming statistics. Eurostat. (2022).

 

P.S. Fica o desafio "acordai homens [ou mulheres] que dormisem formato musical:


Acordai!
Acordai, homens que dormis
A embalar a dor
Dos silêncios vis!
Vinde, no clamor
Das almas viris,
Arrancar a flor
Que dorme na raíz!

Acordai!
Acordai, raios e tufões
Que dormis no ar
E nas multidões!
Vinde incendiar
De astros e canções
As pedras e o mar,
O mundo e os corações...

Acordai!
Acendei, de almas e de sóis,
Este mar sem cais,
Nem luz de faróis!
E acordai, depois
Das lutas finais,
Os nossos heróis
Que dormem nos covais.
Acordai!

Música: Fernando Lopes-Graça
Letra: José Gomes Ferreira
Coro do Conservatório Nacional



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